Dívida


- Posso então contar com o senhor?

- Foi por isso que nos encontramos.


- Mas não tinha ainda o visto nos olhos, preciso saber.

- É o que eu faço. É pelo que paga.

- E ficamos acertados assim: metade agora. E a outra metade?

- No dia seguinte ao serviço, depois do enterro, nos encontramos.

- Precisa saber dos detalhes?

- Já me contaste.

- Te disse apenas o nome, a descrição e o endereço.

- Isso basta.

- Não quer saber o motivo? Não lhe traz a curiosidade?

- Não me cabe. A metade que me paga é para o incentivo. A outra é pra consciência.

- E se ela estiver grávida?

- Procurarei não saber.

- Se tiver o olhar inocente, se pedir clemência?

- Não lhe darei tempo.

- Ela sofrerá?

- Não.

- Gostaria que sofresse um pouco. Ou que soubesse por que foi condenada.

- Não é meu trabalho.

- Tenho mais ouro.

- Mas eu não tenho o ódio. A mim, basta o serviço feito.

- Não tens medo de que eu o prenda?

- Não. Te conheço.

- Mas é a primeira vez que me vê.

- Não. Quando viestes me procurar das primeiras vezes, e não me encontrastes, não foi por minha ausência, como lhe disseram, foi por minha precaução.

- O que dizes?

- Me resguardei nas sombras, e depois o segui. E depois, ainda, o observei. Sei onde mora, o que faz, quem são os seus.

- Não imaginava.

- Pois assim é.

- Onde nos encontraremos depois de feito o serviço?

- Em sua casa, à noite do dia seguinte, somente nós dois, mais ninguém.

- Se eu me recusar a pagar?

- Já lhe disse: sei quem são os seus.

- Pergunto-te, mas não haverá caso para tanto. E quando o fará?

- Quando for conveniente.

- Hoje ainda?

- Talvez. A noite ainda é pouca, há muitas pessoas acordadas, menos, talvez, os velhos e as crianças.

- Esses não são problema: pouco se acredita no que dizem.

- Grave erro, quase sempre dizem a verdade, mesmo que misturada à imaginação.

- É correto, admito. Mas preciso de um prazo.

- Tudo depende da oportunidade. Mas, nesses casos, a oportunidade não costuma tardar três dias.

- Se eu mudar de idéia?

- Pode então evitar, se ainda for tempo. Mesmo assim o ouro deve ser completado. Mas pode também ser tarde, se sua consciência for lenta.

- E aí acontecerá de qualquer forma.

- Isso é assunto seu com o padre, não comigo.

- Já vi que é prático.

- Faz parte da profissão.

- Ficamos então acertados.

- Se assim o quer.

- Te desejo sorte.

- Não me deseje, cuido dos meus passos.

*   *   *   *   *   *   *   *   *   *



- Não o esperava tão cedo. Imaginava que virias na madrugada.

- A madrugada é para os suspeitos. Não me permito tanto.

- Me desculpe recebê-lo assim, não me encontro muito bem. Aproveite um café, acabou de ser feito.

- Agradeço. Mas vim também pelo que me deve.

- Claro. Irei buscá-lo, se não se importa. Me pegaste despreparado.

- Se encontra aqui?

- No meu quarto, Peço-te um segundo para busca-lo.

- À vontade.

*   *   *   *   *   *   *   *   *   *


- Aqui está. Concluímos.

- Concluímos.

- Preciso saber dos detalhes.

- É seu direito.

- Podes ver que sofro, tenho medo do que irá me dizer.

- Ainda a amava.

- Sim, só agora percebo com clareza.

- E dói-lhe o que fizestes.

- Muito.

- Não será caso para tanto, sua dor não há de durar muito tempo.

- Porque o dizes?

- Porque estás a morrer.

- Não é verdade. Só uma indisposição.

- É a verdade. Meu trabalho é sério.

- És também médico?

- Sabes muito bem que é exatamente o contrário.

- Não entendo.

- Seu café. Eu o envenenei.

- ...

- Dou-lhe tempo para entender, sou justo quando posso.

- É mentira o que dizes. Não me sinto morrer.

- Não se disse indisposto? Não se sente mais fraco?

- Já o estava antes que chegastes.

- Mas agora também lhe embaralham um pouco os pensamentos. Seus braços estão pesados. Doem-lhe um pouco os órgãos.

- É verdade.

- Porque já começou.

- Achava que eram os humores e o cansaço. Passei a noite em vigília, velando e me arrependendo.

- Pois a isso se soma o veneno.

- Por quê?

- Porque ela me pediu. E me pagou.

- Traição!

- Não a vejo. É mais um trabalho.

- Conversou então com ela.

- Sim

- O que? Conte-me tudo!

- Não muito, poucas palavras. Ela logo percebeu do que se tratava. Não foi possível entrar despercebido.

- Lutou?

- Não. Ela aceitou o presente que lhe mandastes. Seu rosto era de resignação.

- Ela o desejava então.

- Ninguém deseja tal prêmio. Talvez percebesse no meu olhar a determinação.

- Porque ela não gritou?

- Primeiro eu a desacordei com um preparado embebido no lenço. Acordou ainda com o corpo torpe. Não haveria luta, ela era inteligente.

- Sinto meu corpo também assim. Não consigo mais me mover.

- Não se preocupe, também não irá sofrer.

- Continue, o tempo é curto. Quero saber.

- Ela sabia que você me mandou, não foi preciso mistério. Negociou meu preço para também lhe mandar um presente.

- Porque aceitou?

- Ora, é meu ofício.

- Oficio demoníaco.

- Terei também meu acerto a fazer, quando for a hora. Ela me mostrou onde guardava o dinheiro. Não eram poucas suas economias, não sei se era do seu assunto.

- Nunca lhe perguntei.

- Peguei apenas a parte que me cabia no negociado. O restante, a pedido dela, foi doado a um orfanato, sem explicações nem mérito.

- Não tenho esse desprendimento na alma.

- Nem eu o espero.

- E depois?

- Apliquei-lhe a injeção já pronta. Depois dormiu.

- Para não mais acordar.

- Logo já não era sono e nem haveria sonhos.

- Comigo também será assim?

- Posso providenciar. Não tenho interesse que sofra.

- É verdade o que me disseram de você.

- O que?

- Nunca deixa um serviço inacabado.

- Não é uma sinfonia o que faço, não é grande obra, apesar do que dizem os poetas.

- Eles dizem muito.

- E ás vezes sem conhecimento de causa.

- Se apresse, me sinto acabado, mal me saem as palavras.

- Tenho pronta a seringa. Farei agora se quiser.

- Te peço um favor.

- Farei se for possível.

- Espere minha alma ir. Ajeite meu corpo se eu lutar nessa hora, feche meus olhos se eu não conseguir a tempo.

- Assim será. Parecerá que descansa.

- Rezará por mim?

- Não tenho esses hábitos. Caberá a quem o ama, se existirem.

- Espero que sim. Saiba também que o amaldiço-o.

- Não é o primeiro.

- Pode fazê-lo agora.

- Respire. Logo acabará.

- Cuide dos seus passos. Pagará por tudo.

- Cuidarei.



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Créditos:
Texto e fotografia: Thiago Carvalho (todos os direitos reservados)
Publicado no blog O Inimigo do Bom é o Melhor

comment 3 comentários:

Levi Ventura on 23:51 disse...

Incrível man!
Desde que tenho você como contato no Dihitt, ainda não me arrependi nenhuma vez de ter clicado em suas atualizações. Hoje foi mais uma dessas ocasiões, bom conto, bom blog.

Levi Ventura

Thiago disse...

Cara, fico feliz com isso, de verdade. Bom saber como as coisas estão bem recebidas. Críticas ruins também são bem vindas, se alguma coisa desagradar, pode xingar que eu respondo!!!

Um abração!

Caroline on 13:26 disse...

Thiago, muito bom! Conheço bem pouco desse seu espaço, mas sua escrita é fascinante. Adorei o Blog!

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