Família e talheres à mesa. Coisa tradicional: marido, mulher, o filho e a filha. Um restaurante chique e caríssimo, destes onde os trajes são avaliados na entrada e, se preciso, um casaco pode ser
emprestado ao cliente. Tudo com as insinuações e olhares do maitre (esse dissimulado). Desses lugares onde desfilam todo o lado esnobe da sociedade.
Mas finalmente estavam lá. O marido teve que economizar algum dinheiro, compraram roupas para a ocasião, mandou dar um polimento especial no carro – não é modelo do ano, mas teve de servir. É um sonho antigo do casal jantar naquele restaurante, um ambiente sofisticado, exibirem-se, trocarem cumprimentos vagos com vagos conhecidos, potenciais ou fictícios clientes, importantes e influentes. Pura emoção. Quem sabe a filha, pitéuzinho na flor da primavera, não conhecesse um bom partido ali? São muitos os riscos.
É verdade que a mesa não é das melhores do restaurante, mas tudo bem, era num cantinho meio privado, ao lado do banheiro... mas até os ricos e importantes precisam se aliviar! Só era preciso tomar cuidado com os apertos de mãos.
E lá vinha o maitre (esse esnobe) com a carta de vinhos. Aquela figura francesa caricata: rosto comprido, nariz idem, cabelo engomado, bigodinho fino. Magro. Tudo uma fineza só. No mal sentido. O marido, como patriarca e péssimo entendedor de vinhos (tinha até birra pessoal de garrafa com rolha, ao invés de tampinha), após disfarçados olhares com a esposa, optou pela sugestão do empregado. Dada com a sombrancelha arqueada, óbvio. Junto com o vinho, experimentado de imediato, sem o devido ritual de pompa – e mais um grunhido de despreso do maitre (esse fanfarrão) – veio o cardápio. O prato foi vagamente discutido entre o casal, indicado com um dedo no cardápio, porque nenhum sabia ler ou falar francês. Mas o preço vinha em português, o que ajudou. E a entrada? É mesmo, tinha esquecido! Valeu-lhe o pisão no pé dado pela esposa. Estou em dúvida, disse, fingindo descaso, pode ser qualquer coisa aí que combine com o prato principal. O maitre (esse crápula) nem se dignou à resposta.
Os minutos de espera foram gastos em reconhecimento de território. E os comentários logo começaram a brotar.
- Nossa, olha como fulano engordou.
- Mas a mulher continua enxutíssima. Plástica. Só pode ser.
- Aquele ali não é o Robertinho, seu cliente famoso?
- Onde? É sim! – e acena sem ser visto.
- Aquela loira é a mulher dele?
- Não, ela está em temporada na Itália. Deve ser uma irmã.
- Com a mão na coxa dele?
Foram interrompidos pelo garçom trazendo a entrada. Nada demais: uns pãezinhos, um patê meio desbotado, alguns pedaços de um queijo duro. Todos se entreolham. Beliscam um pouquinho. Só o filho ataca com tudo.
- Carlinhos, olha os modos! – diz a mãe e logo volta aos comentários.
- Tudo aqui é tão chique! Adorei os arranjos de mesa!
- E os quadros? Devem ter custado uma fortuna. Tem até um piano de cauda no canto. Aposto que foi tão caro que o pianista veio de brinde.
- Aquele ali entrando não é o Maciel, filho do doutor Cardoso? – vira-se pra filha. – Vai ser um grande advogado. Entrou sozinho, percebeu?
A filha corou, mas não desviou os olhos. Justo quando ia dizer alguma coisa, surge o garçom com as bandejas do prato principal. Retira as tampas. Parecia mais bonito no cardápio, escrito em francês. Ali, ao vivo, era como uma massa quadrada no meio do prato e um molho respingado ao redor. Mas o cheiro era bom. Com mais praticidade do que elegância, o garçom serviu a todos.
Momento de tensão. Postura. Um mundo de talhes à mesa, um leque de possibilidades. Só uma delas evita o desastre de uma gafe. A esposa não hesita, prendada e educada; de imediato escolhe os corretos. Os outros a seguem com alivio e naturalidade disfarçada. O filho é que foi logo metendo o dedo no molho.
- Carlinhos, pára com isso! – olha para o marido. – e o senhor tira esses cotovelos da mesa, pelo amor de Deus! – olhou ao redor com um sorriso amarelo, mas ninguém prestava atenção.
O moleque, esfomeado, pegou o maior garfo que achou e enfiou no fillet de quelque chose, deixou um vegetal não identificado pular do prato e, por fim, derrubou um pedaço na mesa. Não se deu por vencido; pegou com a mão mesmo e enfiou na boca. A mãe olhava indignada. O pai interveio:
- Filho, é assim que se faz, ó! – espetando um pedaço e deixando cair, cheio de molho escuro na camisa branca. Risadinha da filha, gargalhada com a boca cheia do filho, a esposa morrendo de vergonha.
Mas Carlinhos sentia fome, que é urgente, e voltou a atacar o prato. Usou o que tinha de melhor pra isso: dedos. Lambuzados, claro.
A família intervém em massa:
- Pára com isso já!
- Mas eu tô com fome, mãe – choraminga e volta ao serviço.
- Sem mas. Quantas vezes já te falei pra não comer com as mãos nem falar de boca cheia?
Ele pára um segundo pra pensar. Quantas mesmo ele não lembra, mas foram muitas. Quase todo dia. Mas o estomago roncava e ele não entendia porque não podia simplesmente comer. Era assim que fazia, ora. Bebeu um gole do refrigerante, indignado. Um fio escorreu direto pra roupa.
- Já não agüento mais falar com esse menino, vê se faz alguma coisa – e olha pro marido com aquela cara que as esposas treinam pra fazer. Aquela que diz “vai lá traste, não vê que to fazendo isso sozinha, não tem dó de mim, que faço tudo por todos, o tempo inteiro? EU NÃO TENHO MAIS VIDA!!!”. Sabe? Aquela cara com a boca em riste e o olhar fixo, que faz o cara se sentir culpado nem ele sabe do quê. Terrível.
- Olha Carlinhos, se você se comportar, eu compro um sorvete. Pode escolher onde.
Não fez caso, Carlinhos não queria sorvete depois, queria comer agora. Como toda criança sabe fazer, desligou o ouvido e seguiu seus instintos. E botou a mão na massa – ou o diabo que era aquilo no prato.
- Já tem gente olhando! O garçom tá rindo!
- Deixa ele em paz, pôxa. É criança!
- Mas olha essa lambança! O que seus clientes vão pensar? Que nós não educamos?
- Moleque, se não parar te ponho te castigo!
- Você tá estragando uma noite maravilhosa!
- Porque não é igual sua irmã?
Ele já nem ouvia mais nada. Se deliciava com a comida e se lambuzava todo, com um prazer cada vez maior. Imaginava que era um leão. Já mirava o prato do pai. A presa do outro leão, que ia ser dele se desse sopa – ou o diabo que fosse aquilo. E a mãe não dando um troço por convenção social. RRRAAAARRRRRR!!!
emprestado ao cliente. Tudo com as insinuações e olhares do maitre (esse dissimulado). Desses lugares onde desfilam todo o lado esnobe da sociedade.
Mas finalmente estavam lá. O marido teve que economizar algum dinheiro, compraram roupas para a ocasião, mandou dar um polimento especial no carro – não é modelo do ano, mas teve de servir. É um sonho antigo do casal jantar naquele restaurante, um ambiente sofisticado, exibirem-se, trocarem cumprimentos vagos com vagos conhecidos, potenciais ou fictícios clientes, importantes e influentes. Pura emoção. Quem sabe a filha, pitéuzinho na flor da primavera, não conhecesse um bom partido ali? São muitos os riscos.
É verdade que a mesa não é das melhores do restaurante, mas tudo bem, era num cantinho meio privado, ao lado do banheiro... mas até os ricos e importantes precisam se aliviar! Só era preciso tomar cuidado com os apertos de mãos.
E lá vinha o maitre (esse esnobe) com a carta de vinhos. Aquela figura francesa caricata: rosto comprido, nariz idem, cabelo engomado, bigodinho fino. Magro. Tudo uma fineza só. No mal sentido. O marido, como patriarca e péssimo entendedor de vinhos (tinha até birra pessoal de garrafa com rolha, ao invés de tampinha), após disfarçados olhares com a esposa, optou pela sugestão do empregado. Dada com a sombrancelha arqueada, óbvio. Junto com o vinho, experimentado de imediato, sem o devido ritual de pompa – e mais um grunhido de despreso do maitre (esse fanfarrão) – veio o cardápio. O prato foi vagamente discutido entre o casal, indicado com um dedo no cardápio, porque nenhum sabia ler ou falar francês. Mas o preço vinha em português, o que ajudou. E a entrada? É mesmo, tinha esquecido! Valeu-lhe o pisão no pé dado pela esposa. Estou em dúvida, disse, fingindo descaso, pode ser qualquer coisa aí que combine com o prato principal. O maitre (esse crápula) nem se dignou à resposta.
Os minutos de espera foram gastos em reconhecimento de território. E os comentários logo começaram a brotar.
- Nossa, olha como fulano engordou.
- Mas a mulher continua enxutíssima. Plástica. Só pode ser.
- Aquele ali não é o Robertinho, seu cliente famoso?
- Onde? É sim! – e acena sem ser visto.
- Aquela loira é a mulher dele?
- Não, ela está em temporada na Itália. Deve ser uma irmã.
- Com a mão na coxa dele?
Foram interrompidos pelo garçom trazendo a entrada. Nada demais: uns pãezinhos, um patê meio desbotado, alguns pedaços de um queijo duro. Todos se entreolham. Beliscam um pouquinho. Só o filho ataca com tudo.
- Carlinhos, olha os modos! – diz a mãe e logo volta aos comentários.
- Tudo aqui é tão chique! Adorei os arranjos de mesa!
- E os quadros? Devem ter custado uma fortuna. Tem até um piano de cauda no canto. Aposto que foi tão caro que o pianista veio de brinde.
- Aquele ali entrando não é o Maciel, filho do doutor Cardoso? – vira-se pra filha. – Vai ser um grande advogado. Entrou sozinho, percebeu?
A filha corou, mas não desviou os olhos. Justo quando ia dizer alguma coisa, surge o garçom com as bandejas do prato principal. Retira as tampas. Parecia mais bonito no cardápio, escrito em francês. Ali, ao vivo, era como uma massa quadrada no meio do prato e um molho respingado ao redor. Mas o cheiro era bom. Com mais praticidade do que elegância, o garçom serviu a todos.
Momento de tensão. Postura. Um mundo de talhes à mesa, um leque de possibilidades. Só uma delas evita o desastre de uma gafe. A esposa não hesita, prendada e educada; de imediato escolhe os corretos. Os outros a seguem com alivio e naturalidade disfarçada. O filho é que foi logo metendo o dedo no molho.
- Carlinhos, pára com isso! – olha para o marido. – e o senhor tira esses cotovelos da mesa, pelo amor de Deus! – olhou ao redor com um sorriso amarelo, mas ninguém prestava atenção.
O moleque, esfomeado, pegou o maior garfo que achou e enfiou no fillet de quelque chose, deixou um vegetal não identificado pular do prato e, por fim, derrubou um pedaço na mesa. Não se deu por vencido; pegou com a mão mesmo e enfiou na boca. A mãe olhava indignada. O pai interveio:
- Filho, é assim que se faz, ó! – espetando um pedaço e deixando cair, cheio de molho escuro na camisa branca. Risadinha da filha, gargalhada com a boca cheia do filho, a esposa morrendo de vergonha.
Mas Carlinhos sentia fome, que é urgente, e voltou a atacar o prato. Usou o que tinha de melhor pra isso: dedos. Lambuzados, claro.
A família intervém em massa:
- Pára com isso já!
- Mas eu tô com fome, mãe – choraminga e volta ao serviço.
- Sem mas. Quantas vezes já te falei pra não comer com as mãos nem falar de boca cheia?
Ele pára um segundo pra pensar. Quantas mesmo ele não lembra, mas foram muitas. Quase todo dia. Mas o estomago roncava e ele não entendia porque não podia simplesmente comer. Era assim que fazia, ora. Bebeu um gole do refrigerante, indignado. Um fio escorreu direto pra roupa.
- Já não agüento mais falar com esse menino, vê se faz alguma coisa – e olha pro marido com aquela cara que as esposas treinam pra fazer. Aquela que diz “vai lá traste, não vê que to fazendo isso sozinha, não tem dó de mim, que faço tudo por todos, o tempo inteiro? EU NÃO TENHO MAIS VIDA!!!”. Sabe? Aquela cara com a boca em riste e o olhar fixo, que faz o cara se sentir culpado nem ele sabe do quê. Terrível.
- Olha Carlinhos, se você se comportar, eu compro um sorvete. Pode escolher onde.
Não fez caso, Carlinhos não queria sorvete depois, queria comer agora. Como toda criança sabe fazer, desligou o ouvido e seguiu seus instintos. E botou a mão na massa – ou o diabo que era aquilo no prato.
- Já tem gente olhando! O garçom tá rindo!
- Deixa ele em paz, pôxa. É criança!
- Mas olha essa lambança! O que seus clientes vão pensar? Que nós não educamos?
- Moleque, se não parar te ponho te castigo!
- Você tá estragando uma noite maravilhosa!
- Porque não é igual sua irmã?
Ele já nem ouvia mais nada. Se deliciava com a comida e se lambuzava todo, com um prazer cada vez maior. Imaginava que era um leão. Já mirava o prato do pai. A presa do outro leão, que ia ser dele se desse sopa – ou o diabo que fosse aquilo. E a mãe não dando um troço por convenção social. RRRAAAARRRRRR!!!
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Créditos:
Texto e fotografia: Thiago Carvalho (todos os direitos reservados)
Publicado no blog O Inimigo do Bom é o Melhor
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