Xamanismo (Memória Fotográfica)



Para que existam alternativas ao mundo racional é preciso admitir outras possibilidades, antes de tudo. Se abrir à imaginação visionária em seus próprios termos, às experiências sensíveis, que são marcadas em um nível subconsciente.

Não é uma questão de invalidar o pensamento racional. Isso vai até contra o instinto de sobrevivência. É somente colocar à prova pressupostos que bloqueiam uma abertura a experiências que vão além do ego. É se propor à catarse e á aceitação do instinto animal. Porque, na base de toda cultura, e também da visão mística, está exatamente o que nós temos de mais animal, e as regras que temos pra isso. Toda cultura vai envolvendo e definindo o que é orgânico: as formas de comer, cagar, morar, trepar, nascer e morrer. E criamos símbolos, conteúdo que preenche estas formas. O que eu chamo de xamã é aquele que absorve tudo isso e também transforma sua expressão em carga simbólica, em linguagem também emocional. É portador de uma expressão artística, antes de tudo, de uma forma de se dirigir ao mundo.  E mantém uma relação de intimidade com essas experiências. A criatividade, a catarse, a intuição, se tornam velhos amigos ou eternas amantes.

Mas, falar em magia, hoje, é invocar imagens de prestidigitadores, escritores duvidosos, personagens aparatosos, idealismos de contos de fadas para adultos: coisas do mundo da ribalta ou do marketing. Ou seja, nos acostumamos a tolerar os mágicos como parte da indústria da diversão, e só ali. Curandeiro, pajé, xamã, feiticeiro. Os próprios nomes lembram estereótipos selvagens e cômicos.

Às vezes nos sentimos apanhados de emboscada por essas experiências; por defesa do nosso ponto de vista, de criação, que solidificamos, reduzimos isso à um nível de imaginação que identificamos com uma infantilidade pueril. Às vezes piramos com um filme, um disco, uma pessoa, um relacionamento, uma dança, um livro ou uma história; ao invés de levar essa experiência às últimas conseqüências emocionais, de traze-la para nossa visão de mundo, isolamos do que é cotidiano e prático e, gradualmente, quase sempre muito rápido, a experiência se perde. Isso acontece quando também quanto ao que vivenciamos diretamente, sem o auxílio da imaginação dos outros: coisa comum na vida é um momento em que temos que enterrar um dos nossos, ou ver o nascimento de outro. E quantos, mesmo passando por isso, dão abertura e possibilidade de viver uma tempestade interna e mantém uma postura de reverência com a própria vida? Pra mim, assumir essas coisas faz parte de desenvolver uma inteligência emocional: não é achar que se sofre menos ou se alegra mais dessa forma, mas de uma postura de não se poupar, com subterfúgios, de nada disso. Imergir na experiência e sair bem resolvido e com uma bagagem perene. E também de se dar a chance do erro. Isso tudo tem tanta importância quanto se treinar nas habilidades racionais, tudo faz parte da construção de um mundo que nem de longe precisa ser ordinário ou vulgar. É se livrar da ingenuidade.

Você talvez leia tudo isso com um olhar cético, talvez pensando que é mais uma daquelas tentativas de unir superficialmente uma vaga espiritualidade instintiva, uma moral incerta, uma ética de bem estar e uma racionalidade cambeta. Ou que isso se adequa àquela velha falácia que hoje chamamos de auto ajuda. Bom, come como couber no prato. Mas também não é uma colocação a favor ou contra aquela desgastada dualidade entre tecnocracia e espiritualidade. Não falo de fé, mas de visão integrada, coisa que pode solapar a primeira se for preciso. A máquina não vai dominar o homem, como já disseram alguns. Pensar assim é aquela ingenuidade de que falei. Nossa adaptação e nossa sobrevivência não se deu pela habilidade de criar objetos e símbolos? Viajar de avião é tão impressionante quanto tomar ácido e ter visões. Mas nossa cultura básica (científica e religiosa) se desaprendeu a ver o mundo de várias maneiras. E, desenvolver um olhar muito mais sensual, adaptável e irrestritivo só vai te ajudar a viver mais intensamente a piração que é esse mundo.

O cara na foto, porra... é até difícil falar dele. Se chama Geraldo Pessoa. Músico e poeta. Louco e xamã. Conheci ele por esses acasos, andando sozinho em Ouro Preto. Conversa rápida e ele me chamou pra tocar, na mesma noite. E, caralho, a gente fez uma sonzera nesse dia, quem viu pode sentir. Foi daqueles momentos em que alma fala com a alma, tudo se faz e tudo se acerta, gargalhadas de cumplicidade entre uma música e outra. Não sei explicar isso direito, só sentir. E me sentia trepando com o instrumento. Depois, tocamos outras vezes, no mesmo clima. Ele é dos caras que sacam as pessoas no primeiro olhar. E me dizia que eu era o irmão mais novo dele, tinha um carinho enorme. Aprendi muito com esse cara. Tive a chance de fotografar o mais intimo dele: a casa, os pais, a história, um trampo que só fui entender o tamanho bem depois que foi feito – tenho orgulho demais disso. Nada planejado, nada discutido, tudo por intuição e momento. Essa foto aí tem um pouco desse clima mágico: ele tocando clarineta na fonte que deu início ao vilarejo de Passagem, entre Ouro Preto e Mariana. Ele nasceu nesse lugar. E tava tocando pra fonte mesmo, com todas as lembranças e histórias que ele guarda desde a infância.


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Créditos:
Texto e fotografia: Thiago Carvalho (todos os direitos reservados)
Publicado no blog O Inimigo do Bom é o Melhor

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