Filhotes,
Papai os ama. Mas isso não é o suficiente. Nesse dia dos pais, mas sem essa desculpa, quero eu lhes dar o presente: ficarei, daqui em diante, com o peito aberto e desprotegido para que, quando chegar a hora, vocês me matem. Me matem emocionalmente, matem o pai herói, o pai sempre divertido, o pai que faz mágicas. E que sobre apenas o pai humano, que erra, acerta, vacila, que se dedica quando presente mas respinga ausência.
Que vocês consigam me matar o mais cedo possível. Eu sei, na pele, o quanto dói mais a demora. Meu pai, seu avô, morreu de verdade antes que eu pudesse compreender o quanto ele era humano, frágil e falho - eu era muito novo. Emocionalmente, ele ainda era somente o pai incrível e indestrutível. Quando eu entendi que sua morte foi na verdade lenta e resultado do próprio esforço, as duas coisas se chocaram. E demorei muito pra perdoá-lo pelo que entendi como uma traição e abandono. Talvez ainda nem tenha perdoado de todo – o homem que sou ainda é filho desse menino que fui. Um dia lhes contarei a história toda, é triste pra agora.
Então, me destruam, logo que puderem. Deixem apenas o que sobrar de pé. Esse sou eu, de verdade, por baixo do manto da infância: humano, em demasia, com a cicatriz como troféu. Me perdoem, aos poucos pelas minhas falhas. Reclamem, me cobrem, me acusem. E, então, escutem meu conselho, porque também sei ensinar.
E sei pelas porradas. Tive pouca orientação e muita teimosia. Em algumas coisas acertei, em outras errei feio. Escrevo essa carta para vocês lerem no futuro, sobre coisas que gostaria de ter sabido quando tive que caminhar sozinho. São conselhos pra vocês lerem de vez em quando. Pode ser que ajudem em suas buscas.
Pra começar, saibam que seus corpos são tudo o que vocês tem: trate-os com essa importância. Seu corpo é você, não uma coisa que te abriga e te leva pra lá e cá. Suas reservas são limitadas e vocês vão morrer. Nascer foi a melhor coisa que já lhes aconteceu, queiram ficar aqui o maior tempo possível, da melhor forma possível. A ideia por trás disso é simples: quanto mais tempo com mais qualidade, mais experiências relevantes vocês terão. Haverá fases de excessos e de forçar limites. Mas pautar toda a vida em uma morte heroica ou uma morte autodestrutiva só é bom em livros e filmes.
E então amem, amem até doer. Na vida, a bem dizer, o troço todo gira em torno disso. Amem em vários níveis, várias pessoas. Fiquem abertos para recebe-las e deixa-las ir. Usem esse amor pra deixar a vida lhes trespassar. Não depositem toda a sua subjetividade e seu afeto em uma única pessoa, deixem tudo isso entrar em movimento. Explicando assim parece bobagem. Mas, sempre que acontecer, vocês vão perceber. É mágico.
Mas busquem o sagrado. E isso não é algo religioso, se escolherem não ter religião. Também não é sobre preencher vazios, é sobre acrescentar aos conteúdos. Entendam que o invisível só não pode ser visto, mas pode ser tocado, aspirado, mordido, ouvido. Negá-lo como um todo é simples ignorância. Façam dos seus o seu sagrado. Façam da música e da dança um sagrado. Seja o que for, escolham, adotem e vejam além. Sensivelmente. Isso é sacralizar. Uma parte – bonita ou não – do mundo se desacortina assim. Pura loucura.
E vocês sempre serão o resultado do que decidirem e viverão consequências do que os outros escolheram antes. Com exceção do mal físico que outros decidirem causar em vocês, tudo o mais será por suas culpas. Não serão vítimas, só vão arcar com os frutos ou consequências – às vezes, se paga, às vezes se recebe. Não se pautem pelo mote de que de todo o mal vem um mal e de todo o bem vem um bem; isso é infantilidade. Só vejam que a vida tem muitas arapucas, e escapem de quantas puderem. E ninguém lhes deve nada de antemão, só aquilo que conquistaram. O orgulho se anuncia de forma mais explicita, só não caiam nessa. Cada dia duvidando disso é um canto de sereia.
Por isso, cuidem de suas finanças, desde o primeiro salário. O mundo já é cruel nisso hoje e o futuro de vocês será mais difícil que o meu nesse sentido. Muito esforço é feito para lhes separar do seu suado dinheiro sem lhes dar nada de útil em troca. Não projetem seu valor de pessoas em coisas; deixem as coisas serem apenas isso, com seu valor relativo e nada mais. Gastem muito com as experiências, mas se previnam, ao mesmo tempo, para a velhice, pois ela pode fragilizá-los.
Respeitem o que é incerto, pois toda a estabilidade é ilusão: eterna enquanto dura. O mundo é grande, plural, insano, inconstante e impressionante. Não há mapas. Façam de suas vidas, vidas extraordinárias, não receitas de sucesso. A vida tem sempre uma última estrada; o mundo, não.
E escutem mais do que falam, porque vocês não são e nunca serão independentes: em tudo o que fazem e precisam, há outras pessoas que garantem ou impedem isso. Ser humano é ser uma parte do que opera mesmo sem seus consentimentos, o que faz com que ninguém seja inteiramente dono de si mesmo. Vocês são tão dependentes como quando eram bebês, só não são tão frágeis. Foquem em entender o processo pra não confundirem as duas coisas. Não “sejam vocês mesmos”, porque isso é papo das crianças que deixaram de ser. Sejam parte.
E, tudo isso, é pra dizer que vocês vão acertar e fazer besteira de vez em quando. E que o grande lance está no “quando”. Me matem, assim, que puderem, e prometo que deixo meus sapatos de defunto de recordação pra vocês, e ninguém mais. O resultado vai ser o contrário da minha ausência: vai ser minha presença de verdade. Talvez até com cabelos brancos, se vocês repararem.
No mais, se vocês se encontrarem sozinhos e com medo, ou sentirem saudades, ou se só quiserem me encher de sorrisos, saibam que sempre tem um lugar pra voltar. E eu vou sempre adorar cozinhar pra vocês.
E chegando aqui eu explico tudo de novo se precisar.
Com amor,
Papai.
Papai os ama. Mas isso não é o suficiente. Nesse dia dos pais, mas sem essa desculpa, quero eu lhes dar o presente: ficarei, daqui em diante, com o peito aberto e desprotegido para que, quando chegar a hora, vocês me matem. Me matem emocionalmente, matem o pai herói, o pai sempre divertido, o pai que faz mágicas. E que sobre apenas o pai humano, que erra, acerta, vacila, que se dedica quando presente mas respinga ausência.
Que vocês consigam me matar o mais cedo possível. Eu sei, na pele, o quanto dói mais a demora. Meu pai, seu avô, morreu de verdade antes que eu pudesse compreender o quanto ele era humano, frágil e falho - eu era muito novo. Emocionalmente, ele ainda era somente o pai incrível e indestrutível. Quando eu entendi que sua morte foi na verdade lenta e resultado do próprio esforço, as duas coisas se chocaram. E demorei muito pra perdoá-lo pelo que entendi como uma traição e abandono. Talvez ainda nem tenha perdoado de todo – o homem que sou ainda é filho desse menino que fui. Um dia lhes contarei a história toda, é triste pra agora.
Então, me destruam, logo que puderem. Deixem apenas o que sobrar de pé. Esse sou eu, de verdade, por baixo do manto da infância: humano, em demasia, com a cicatriz como troféu. Me perdoem, aos poucos pelas minhas falhas. Reclamem, me cobrem, me acusem. E, então, escutem meu conselho, porque também sei ensinar.
E sei pelas porradas. Tive pouca orientação e muita teimosia. Em algumas coisas acertei, em outras errei feio. Escrevo essa carta para vocês lerem no futuro, sobre coisas que gostaria de ter sabido quando tive que caminhar sozinho. São conselhos pra vocês lerem de vez em quando. Pode ser que ajudem em suas buscas.
Pra começar, saibam que seus corpos são tudo o que vocês tem: trate-os com essa importância. Seu corpo é você, não uma coisa que te abriga e te leva pra lá e cá. Suas reservas são limitadas e vocês vão morrer. Nascer foi a melhor coisa que já lhes aconteceu, queiram ficar aqui o maior tempo possível, da melhor forma possível. A ideia por trás disso é simples: quanto mais tempo com mais qualidade, mais experiências relevantes vocês terão. Haverá fases de excessos e de forçar limites. Mas pautar toda a vida em uma morte heroica ou uma morte autodestrutiva só é bom em livros e filmes.
E então amem, amem até doer. Na vida, a bem dizer, o troço todo gira em torno disso. Amem em vários níveis, várias pessoas. Fiquem abertos para recebe-las e deixa-las ir. Usem esse amor pra deixar a vida lhes trespassar. Não depositem toda a sua subjetividade e seu afeto em uma única pessoa, deixem tudo isso entrar em movimento. Explicando assim parece bobagem. Mas, sempre que acontecer, vocês vão perceber. É mágico.
Mas busquem o sagrado. E isso não é algo religioso, se escolherem não ter religião. Também não é sobre preencher vazios, é sobre acrescentar aos conteúdos. Entendam que o invisível só não pode ser visto, mas pode ser tocado, aspirado, mordido, ouvido. Negá-lo como um todo é simples ignorância. Façam dos seus o seu sagrado. Façam da música e da dança um sagrado. Seja o que for, escolham, adotem e vejam além. Sensivelmente. Isso é sacralizar. Uma parte – bonita ou não – do mundo se desacortina assim. Pura loucura.
E vocês sempre serão o resultado do que decidirem e viverão consequências do que os outros escolheram antes. Com exceção do mal físico que outros decidirem causar em vocês, tudo o mais será por suas culpas. Não serão vítimas, só vão arcar com os frutos ou consequências – às vezes, se paga, às vezes se recebe. Não se pautem pelo mote de que de todo o mal vem um mal e de todo o bem vem um bem; isso é infantilidade. Só vejam que a vida tem muitas arapucas, e escapem de quantas puderem. E ninguém lhes deve nada de antemão, só aquilo que conquistaram. O orgulho se anuncia de forma mais explicita, só não caiam nessa. Cada dia duvidando disso é um canto de sereia.
Por isso, cuidem de suas finanças, desde o primeiro salário. O mundo já é cruel nisso hoje e o futuro de vocês será mais difícil que o meu nesse sentido. Muito esforço é feito para lhes separar do seu suado dinheiro sem lhes dar nada de útil em troca. Não projetem seu valor de pessoas em coisas; deixem as coisas serem apenas isso, com seu valor relativo e nada mais. Gastem muito com as experiências, mas se previnam, ao mesmo tempo, para a velhice, pois ela pode fragilizá-los.
Respeitem o que é incerto, pois toda a estabilidade é ilusão: eterna enquanto dura. O mundo é grande, plural, insano, inconstante e impressionante. Não há mapas. Façam de suas vidas, vidas extraordinárias, não receitas de sucesso. A vida tem sempre uma última estrada; o mundo, não.
E escutem mais do que falam, porque vocês não são e nunca serão independentes: em tudo o que fazem e precisam, há outras pessoas que garantem ou impedem isso. Ser humano é ser uma parte do que opera mesmo sem seus consentimentos, o que faz com que ninguém seja inteiramente dono de si mesmo. Vocês são tão dependentes como quando eram bebês, só não são tão frágeis. Foquem em entender o processo pra não confundirem as duas coisas. Não “sejam vocês mesmos”, porque isso é papo das crianças que deixaram de ser. Sejam parte.
E, tudo isso, é pra dizer que vocês vão acertar e fazer besteira de vez em quando. E que o grande lance está no “quando”. Me matem, assim, que puderem, e prometo que deixo meus sapatos de defunto de recordação pra vocês, e ninguém mais. O resultado vai ser o contrário da minha ausência: vai ser minha presença de verdade. Talvez até com cabelos brancos, se vocês repararem.
No mais, se vocês se encontrarem sozinhos e com medo, ou sentirem saudades, ou se só quiserem me encher de sorrisos, saibam que sempre tem um lugar pra voltar. E eu vou sempre adorar cozinhar pra vocês.
E chegando aqui eu explico tudo de novo se precisar.
Com amor,
Papai.
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Creditos:
Texto e fotografia: Thiago Carvalho (todos os direitos reservados)
Publicado no blog O Inimigo do Bom é o Melhor
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